Guerrilheiros
Cidadão de Três Pátrias
Roberto Antonio de Fortini era apenas uma criança quando veio com a família, em 1949, para o Brasil. Mas lembra, ainda com o filtro dos treze anos, dos horrores que a pacata comuna de Sarcedo, no remoto interior da Itália enfrentou com a destruição provocada pela segunda guerra mundial. Mais do que isso, guarda com precioso cuidado os efeitos negativos do fascismo e do nazismo na vida, na cultura e, principalmente, na alma do povo. Vem daí a sua inabalável fé na democracia e nos princípios socialistas da esquerda. Por isso, era apenas natural a sua adesão aos movimentos sociais que combateram a ditadura durante os anos de chumbo, que começaram no Brasil em 1964. Com o advento do AI-5, em 1968, ainda em Passo Fundo, Rio Grande do Sul, aderiu à Vanguarda Popular Revolucionária(VPR), grupo guerrilheiro de extrema esquerda, e caiu na clandestinidade. E aí, passou a enfrentar os sacrifícios exigidos para pavimentar a busca do sonho. Não havia outro jeito. A eterna busca por um futuro melhor, afinal, teria mesmo que passar pela luta armada. Ele nunca vacilou. Nem quando teve que esconder da companheira recém seduzida na pequena Coronel Bicaco, no noroeste gaúcho, a verdadeira operação por trás da aparentemente inocente loja de pescados na vizinha Três Passos. Com a desculpa de abastecer a clientela, eles passavam os dias em atividades junto aos rios e reservas da região. Nadia, a bela e ingênua companheira, semi-alfabetizada, então com tenros dezessete anos, nem queria imaginar o que mais poderia haver por trás daquela mágica realidade. Sua vida havia encontrado um rumo de conto de fadas. Afinal, um italiano alto, olhos azuis, dinâmico empreendedor, lhe oferecia uma ampla casa mobiliada, se mostrava apaixonado e ainda demonstrava precisar dela: afinal, era ela quem tinha que tomar conta da loja de pescados. E a loja ia bem: entre a crescente clientela fulguravam algumas estrelas do firmamento militar do quartel local. Para estes, sempre havia alguns exemplares de brinde, seguindo a cartilha habitual do comercio que paparicava as onipotentes autoridades militares da época.
E assim a vida seguia para o recém formado casal: enquanto Nadia se esforçava para encantar a distinta clientela frente ao balcão da loja, Roberto se esfalfava nas florestas e rios da região, sempre em contato com os companheiros e seguindo uma rígida agenda que os preparava e orientava sobre a iminente revolução que certamente adviria. Tudo ia bem até que, um dia, a casa caiu. Primeiro na cabeça da Nadia, é claro. Numa modorrenta tarde de sol claro, sem nuvens, no verão de 1970, Nadia se surpreendeu com a inesperada chegada de um comboio de viaturas militares, liderada por um de seus maiores clientes, da brigada militar local. E assim então ela mergulhou num universo que jamais imaginara. Como se tivesse caído na toca de Alice, ela se viu imersa numa realidade que parecia não fazer sentido. Confinada no quartel local da Brigada Militar, ela foi, lentamente e, é claro, sem sutilezas, violentamente informada das verdadeiras atividades do companheiro. A essas alturas, Roberto já estava também desfrutando da indesejável hospitalidade dos brigadianos. Nadia lembra, ainda hoje com arrepios, o inferno de gritos, urros e terror absoluto em que submergiu naquela noite. A partir de então, o casal se separou. Mas apenas fisicamente. Roberto foi levado à llha do Presídio em Porto Alegre. Assim que soube de seu paradeiro, Nadia “largou tudo e foi atrás”. Em boa hora. Roberto já partia para outras paragens. Integrante do grupo de 70 guerrilheiros negociado pelo embaixador suíço seqüestrado em setembro de 1970, Roberto seguiu para Santiago do Chile. Ela, já utilizando o codinome Sonia, alguns meses depois, seguiu para Roma, Itália, onde acabaram se encontrando.
Depois, disso, se sucederam, para o casal, estadias em Paris, Argel, Roma, Buenos Aires, e inúmeras outras grandes e pequenas cidades mundo afora. E é exatamente aí que aflora o grande ensinamento do velho guerrilheiro. Morando há mais de trinta anos em 38 belíssimos hectares, no interior da pequena Aristobolo Del Valle, na província de Misiones, Argentina, o casal demonstra ter aprendido a lição que não se cansa de repetir: o melhor da vida está em viver com a medida exata da sua necessidade. Nem mais, nem menos. Apenas o suficiente. A casa simples, sem luxos, ilustra o conselho. Os olhos claros de Roberto fulguram com vigor quando é convidado a deixar uma mensagem às novas gerações. O tom de voz se altera e o carregado sotaque cosmopolita passeia em uma mistura de português, italiano e espanhol. O entusiasmo do eterno guerrilheiro está de volta. Segundo ele, a luta não acabou. Hoje, apenas mudaram as armas, mas os objetivos permanecem: viver com liberdade, com qualidade e, principalmente, tendo consciência de nosso papel no mundo. Sem consumismo. Sem exageros. A vida integrada ao meio. Como prova, ele apresenta um fato: do espaço disponível na propriedade em que mora, apenas cinco por cento é ocupado para a produção. O resto é pura mata nativa. O verde se multiplica em tonalidades infinitas e nele se encontra a mais profunda das muitas lições vividas, apreendidas e cuidadosamente retransmitidas por Roberto: a natureza nos ensina que só se pode viver em equilíbrio. Sem ganância, sem abusos e, principalmente, sem os excessos do capitalismo desenfreado.
Confira AQUI uma mensagem do velho guerrilheiro
Nilson Rosa Lopes