Constantinense
O constantinense
A sala de procedimentos é como vários lugares num só. Parece uma cozinha, quando enfermeiras conversam e escutam a rádio popular tocando Latino; uma sala de aula, quando o médico está presente ensinando os alunos de enfermagem; e para mim, um lugar de reflexão, quando olho para minha perna engessada. Estava indo pra Argentina, atrás da origem do chamamé, iria viajar apenas de mochila, alguns trocados e umas mentiras pra contar.
O trabalho da faculdade era o pretexto pra convencer meus pais que, provavelmente, não deixariam eu viajar para muito longe. Estava tudo pronto, Corrientes, Argentina, me esperava. Dante Ramon Ledesma e o guitarreiro da Alma de Andejo, Leonardo, me indicaram o lugar. Mas para acabar com todos meus planos, o ligamento do joelho estourou.
Desde guri jogo futebol de salão, chamado “futsal” por aqui. Por ser jogado no piso, o joelho sofre o impacto da correria. Meu pai Airton que sempre jogou, achou estranho engessar: “Isto é coisa do passado, o Vag disse que não se engessa joelho!” Vagner é cunhado do meu tio, Everaldo, e disputa campeonatos de futsal pelo estado. Achei conveniente engessar por que problemas no joelho me preocupam. Além do mais a sugestão era de um clínico geral, não propriamente de um traumatologista, que cuida de nervos e ligamentos, mas uma pessoa mais qualificada que um jogador. Infelizmente fui o “felizardo da partida”, machuquei o joelho a ponto de ter que imobilizá-lo, por pelo menos um mês, fora o tempo de fisioterapia. Com a perna engessada minha viagem à Argentina foi adiada, a história aí em baixo é outra, mas meu joelho passa bem.
Vou dividir um pouco do que passei quando me mudei para um lugar bem diferente do que vivia antes: de Novo Hamburgo para Constantina. Uma grande mudança, visto que esta tem cerca de dez por cento do número de habitantes daquela.
Quando entramos pela primeira vez na casa de um estranho, as diferenças do ambiente logo nos chamam a atenção. Como as tarefas da casa são realizadas, os costumes das pessoas, as questões do cotidiano daquele lugar; enfim, a cultura daquelas pessoas. Neste sentido, tive uma visão em segundo plano, assim como alguém assistindo uma rotina e pude perceber algumas peculiares diferenças entre, Constantina, o meu berço e Novo Hamburgo, onde foi criado, que fica outra região deste estado.Enquanto em Novo Hamburgo a preocupação é chegar em casa com segurança depois de um longo dia de serviço, a maior das preocupações do constantinense é quanto ao tempo meteorológico. A pergunta ‘será que chove?’ não é usada para simplesmente puxar assunto. A chuva ou a falta dela faz toda diferença no cotidiano do comércio, da construção civil e da movimentação financeira na pequena cidade. No dia 28 de setembro uma tempestade mexeu com a cidade inteira, causou prejuízos e muita reclamação O temporal encerrou o chuvoso mês de setembro de 2009 com bastante destruição e foi alvo da mídia durante o dia todo, principalmente a RBS.
“Dio mio!” (Meus Deus) ao céu constantinense podiam ser ouvidos pela parte italiana do município, na alemã algo como “Mein Gott!” (Meus Deus), e na indígena algo como “Yara!” (Deusa da água, no tupi-guarani). São exemplos como estes que mostram a influência de outras línguas sobre o português brasileiro de Constantina, notada de cara também. Durante o Estado Novo, época da ditadura de Getúlio Vargas, Vilmar Farezin, meu avô, sentado na sua poltrona de meia perna e mateando, lembra que nossa família, de origem italiana, era obrigada a falar em português. “Os guardas entravam em nossas casas e obrigavam-nos a falar em português, por que é a língua do país”, dizia Farezin. Por isso, hoje em dia, o norte do Rio Grande do Sul, onde fica Constantina, é uma mistura de dialetos, uma variação geolinguística.
Uma experiência que tive constatou minha tese de que o agricultor, que é o motor das cidades pequenas, como Constantina, por serem de fundamental importância para o município, tem o dever de ser atendido a qualquer circunstância por outros setores de prestação de serviço da cidade. Foi quando prestei um serviço de fretagem para um colono, há mais ou menos dois meses atrás. Eu trabalhava na Agromáquinas, oficina mecânica da minha família e fui informado de que teria que fazer um frete de um pneu furado para um colono, ou seja, trazer o pneu para consertá-lo. Mas na verdade era muito mais do que simplesmente levar um pneu para o cidadão. Saímos ao entardecer da oficina, eu e o agricultor, numa camionete F-1000. Ao chegar na propriedade, uns 30 minutos depois, percebi que o trator, cujo pneu estava furado, havia “encalhado” num desfiladeiro e estava sendo seguro pela roda fincada na terra. Tirá-lo dali daria muito mais trabalho do que o imaginado. O agricultor, então, resolveu chamar um borracheiro para trocar o pneu, pois ninguém ali tinha condições técnicas, enquanto eu ia levar o pneu furado para consertar na borracharia. Na volta, depois de a cola secar, encher a câmara de água necessária para pneus de tratores, fiz o trajeto de volta, cerca de 7km de estrada de chão conversando com o borracheiro que reclamava de ter que fazer esse tipo de serviço, mas a recompensa era boa. Ao fim do serviço, quase dez horas da noite o homem me pagou e vim pra casa.
Entretanto, são os agricultores as figuras populares e lendárias do município. Existe uma cena de um agricultor que me faz rir sempre que lembro, quando um colono foi pagar uma conta na oficina. No caixa, o baixo agricultor, com seu boné da Cresol, camisa de botão e mãos grandes, gesticulava, reclamando do preço do serviço. Começou a resmungar, mais ou menos assim: “Non, non, tá muito caro”, sotaque italiano acentuado, mesmo antes de saber o valor do conserto da sua “carretinha agrícola” e meu pai tentava ponderar: “Pois é, o dinheiro tá escasso para todo mundo, não está?”, para minha surpresa, o colono retrucou, confundindo as palavras: “Escasso nada. Tá acabando!”.
Mas o que mais se nota são famílias, assim como a minha, que tentam a vida na cidade grande, mas acabam voltando para sua pequena cidade de origem, numa espécie de êxodo urbano. Os motivos da volta são diferentes, mas todos têm ligação com sentimentos: saudades da terra natal, dos familiares e amigos. Conversei com dois constantinenses que foram tentar a vida em grandes cidades. Edivelton e Paula. O primeiro na megalópole paulistana e Paula na cidade de São Leopoldo, na região metropolitana do Rio Grande do Sul.
O artista Raul Seixas, que vejo estampado na camiseta de Edivelton cantava: “o homem nasceu pra querer”. Edivelton Koproski, um constantinense de origem polaca e um apaixonado por futebol fala comigo enquanto limpa suas ferramentas de trabalho: chave de fenda, martelo e cola 3M para juntas de motores. Edivelton, ou “Biguli”, como é conhecido em Constantina, hoje é mecânico, mas já trabalhou como garçom de churrascaria na cidade São Paulo. O Raul na sua camiseta, segundo Biguli ele não havia reparado, simplesmente por que se veste sem se preocupar com a estampa, afinal no seu emprego dificilmente alguma roupa permanece limpa. Voltou de São Paulo devido aos problemas da cidade grande, a saudade da família e por causa da excessiva preocupação do paulistano. Na megalópole, Edivelton buscava uma vida melhor. Lá conseguiu o dinheiro necessário para viver e desfrutar de ofertas de produtos que só em São Paulo se encontra, que seriam impossíveis em Constantina. “Eu tinha de tudo no meu apartamento em São Paulo: dvd player, grande televisor, sem falar que era um bom apartamento no centro. Mas o custo de vida foi aumentando e nos últimos tempos estava tudo empatando, meu salário continuava o mesmo, mas as despesas para viver eram maiores”.
De volta à Constantina, Edivelton deparou-se com a falta de oportunidades de profissionalização, mas mesmo assim prefere ficar na pequena cidade. Sua maior preocupação em Constantina, além do tempo meteorológico, que gera sua renda, pois na oficina que trabalha, seu maior cliente é o agricultor, é com a sua família. “Gosto daqui principalmente por que tenho um emprego satisfatório e vivo perto da minha família. Além disso, posso jogar futebol freqüentemente nos campeonatos municipais. Em São Paulo, a renda é alta, mas o custo de vida também”.
A diarista Paula Ferreira, por sua vez, tentou a sorte um pouco mais perto de sua cidade natal, em São Leopoldo, na região metropolitana do RS. Encontrou o que procurava na área profissional: cursos e o dinheiro que necessitava, mas as fanáticas torcidas organizadas do Grêmio e Internacional a assustavam: “Freqüentemente eu via brigas entre essas gangues, eles tentavam até se matar. Além disso, fui assaltada no ponto de ônibus, algumas vezes”.
Ferreira, da lavanderia, enquanto põe algumas roupas dentro da máquina de lavar, me fala que pretende cursar alguma faculdade e que, infelizmente aqui Constantina é mais difícil realizar: “Como lá existem creches, eu podia deixar minha filha sob bons cuidados, enquanto me preocupava somente em trabalhar. Quando tivesse um tempo poderia até começar uma faculdade”. Mesmo recebendo um bom salário como vendedora em um shopping, Paula sentiu falta da família e da calmaria do interior, então decidiu voltar. “Em São Leopoldo tem muitas gangues rivais violentas. Em Constantina tem tudo que se precisa para se viver em família. A cidade é tranqüila e têm pessoas solidárias. É melhor para cuidar dos filhos. O único problema é que não tem creches, e daí não pode fazer nada, tenho que cuidar deles. E faltam oportunidades”. Paula, que não se preocupa muito com chuva alerta outro problema: as drogas na sociedade constantinense, segundo ela o adolescente está começando a consumir bebidas alcoólicas cada vez mais cedo. A falta de lazer na cidade e o descuido da família são os motivos. “Aqui não tem muito lazer, nos fins de semana a gente se encontra na praça para conversar e sempre existe bebida no meio. Acho que os problemas familiares que vem de casa empurram o adolescente para as bebidas, claro que a influencia dos amigos é forte para isso” salienta, a diarista e mãe preocupada Paula Ferreira.
Sentado ao meu lado, na última poltrona do microônibus da empresa Scopel Turismo, que tem como destino a Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões (URI) de Frederico Westphalen, o estudante de direito e funcionário da prefeitura de Constantina, Patrick Madalóz, mostra-se informado com o que acontece em seu município e aponta para alguns problemas enfrentados pela sociedade constantinense. Afirma que a bebida alcoólica entre os jovens é parte de uma questão social herdada de muito tempo, mas que existem muitas coisas que evitam o acesso a elas e que a natureza, que gera lucro para o município, é uma moeda de dois lados.
No Curso de Liderança Juvenil (CLJ), que é ligado à igreja católica, Madalóz encontra o que precisa para não se envolver com drogas. “As festas aqui no interior são familiares, desde criança a bebida está perto da pessoa. Vai da família conscientizar. Acho que participar de grupos de jovens como o CLJ, é bom por que discutimos problemas da sociedade com outros jovens e assim descobrimos os caminhos longe dos males da vida”. Uma coisa que pode ajudar as cidades pequenas como Constantina que tem problemas com a falta de lazer ele destaca é o investimento no ecoturismo. “Temos aqui a cachoeira na linha Alta Paraíso que é um dos pontos mais altos do estado. Esse investimento pode proporcionar além do divertimento cultural, retorno financeiro para o município. Eu não sairia desta cidade, acho que o interior atualmente é muito mais próspero que as grandes cidades”. Mas, segundo ele, a grande preocupação do Constantinense é a chuva, ultimamente o temporal tem devastado as colheitas de soja. “Tivemos um prejuízo altíssimo com o ultimo temporal, do dia 28. Além de destruir o telhado das casas, atingiu as plantações que movem nosso município”.
A insegurança e o medo. Esses sentimentos afugentam os habitantes das cidades grandes, e a exemplo desses casos e da minha família, preferem o interior. O município hoje tem 9.824 habitantes, segundo dados do IBGE de 2007, número que não muda há muito tempo. Ou seja, as pessoas vão, mas voltam.
À luz de minha pesquisa, o constantinense mostra-se um ser humano integrado e dependente da natureza, vivendo desse modo com o inquietante paradoxo da natureza que gera a necessária riqueza hoje e a destrói amanhã.
O constantinense fecha a janela ao ouvir os trovões.
Gustavo Farezin, dezembro de 2009
Confira AQUI o vídeo e dê uma volta por Constantina.