Cinema

 

Cine Delcap

 

Logo que minha primeira pauta para essa grande reportagem caiu, fiquei desanimado. Pensei que não encontraria tão facilmente um outro assunto que me enchesse a boca d’água, mas para minha surpresa, caíram no meu colo duas excelentes pautas. A primeira, em uma janta na casa do meu sogro, regada a cerveja e movida a carne gorda, começamos a discutir sobre o futuro da rádio municipal. Então falando em futuro, começaram as histórias de seu passado. Foi aí que me deu o estalo: vou contar a história da rádio! Afinal, ela já tem mais de 40 anos e sofreu muitos altos e baixos, alguma coisa boa deve ter para ser contada.

Então, com a pauta na cabeça, fui para Porto Alegre, visitar meu irmão. E novamente em uma conversa no jantar, desta vez na mesa do bar, comentei com ele sobre minha reportagem sobre a rádio que pretendia fazer. Ele, que também cursou jornalismo, gostou da idéia, mas completou: Acho que o Cine Delcap dava uma boa.

Putz! Como não havia pensado nisso antes? É claro, o Delcap dava uma ótima matéria! Ainda bem, porque a rádio poderia até ter uma boa história, mas não era um assunto que estava me deixando muito contente.

Pronto! Já havia mudado novamente minha pauta e meu tempo estava esgotando-se como os grãos de areia de uma ampulheta que eu ficava imaginando. Aliás, várias ampulhetas, pois além desta reportagem, precisava fazer meu trabalho de conclusão de curso e mais um trabalho sobre minimalismo para a disciplina de “Comunicação e arte”.

Com a nova pauta em mente, voltei para Frederico Westphalen (cidade do CESNORS/UFSM a faculdade onde estudo), já pensando quais perguntas fazer, para quem fazer, como achar os criadores do cinema? Tomara que estejam em Tenente Portela (minha cidade natal onde existia o Cine Delcap) ainda. Bom, só saberei fim de semana que vem, quando for para lá começar minha pesquisa.

Mas, na quarta-feira tive um estalo: vou amanhã para lá adiantar a pesquisa para poder começar a escrever no fim de semana.

Dito e feito. Quinta-feira à tardinha cheguei em Portela e perguntei para minha mãe: Onde posso encontrar os donos do Cine Delcap?

Foi então que ela me saltou a bomba:

-Bom, o seu Capitulino faleceu e a Dona Lurdes mora em Porto Alegre.

Silêncio.

-É, acho que vou voltar para a pauta da rádio.

-Porque não faz a entrevista por telefone? Ela perguntou.

-Não é a mesma coisa.

-Mas pelo menos tenta.

-Ok. Vou tentar. Como descubro o telefone dela?

-Espera que vou ligar para a Maria Ivone que ela sabe.

Maria Ivone era cunhada da Lurdes.

Fiquei ouvindo minha mãe conversando ao telefone, quando a frase “O quê? Ela está aqui??” chamou minha atenção e me colocou um sorriso na cara. Finalmente um pouco de sorte, pensei.

Ela desligou o telefone e me deu a notícia que já sabia. O que eu não sabia era onde encontrá-la.

-Ela está ficando na casa da Altiva e vai embora amanhã de manhã.

-Altiva é aquela mulher que vende Natura, né?

-Sim.

-Beleza, sei onde é!

Olhei para o relógio, quinze pras seis. Peguei a chave do carro e voei até casa dela. Estacionei um pouco mais longe da casa pois não tinha lugar na frente e, enquanto ia a pé em direção a casa, notei uma senhora já de idade mais avançada parada na esquina conversando com um homem. Será que é ela? Será que não é? Pergunto ou passo reto? Não quis arriscar, passei reto pelos dois tentei abrir o portão da casa, trancado. Droga. Vi que os dois começaram a reparar em mim, devem estar pensando que sou ladrão, imaginei. Peguei o celular, fiz que ia ligar para alguém, desisti. Vou arriscar! E quando me virei para perguntar se ela não era Lurdes, ela foi mais rápida e perguntou:

-Quem você está procurando?

-Por um acaso a senhora não é a Lurdes Moreira Alves?

-Sou.

-Então acabei de achar quem eu estava procurando!

Ela deu um sorriso de canto, estendi a mão, ela ainda meio desconfiada, com seu jeito franzino e delicado me cumprimentou com um aperto de mão firme, para a minha surpresa.

Me apresentei e quando falei meu sobrenome, o jeito desconfiado deu lugar a uma expressão de surpresa e alegria. Neto da dona Maria? - ela perguntou.

-Sim. E do seu Romário! - respondi.

Pronto, era tudo o que ela precisava ouvir.

-No que posso te ajudar, meu filho?

Expliquei para ela minha intenção de fazer uma reportagem sobre o Cine Delcap, contar a história do cinema Portelense. É um trabalho para a faculdade, completei.

-Mas que bom, vamos entrar então e conversar um pouco.

-Com certeza! Assim fica melhor para gravar nossa conversa.

-Ah não! Não vou te deixar gravar. Não gosto de gravadores!

Dei risada a respondi: -Não tem problema. Só queria gravar para não deixar escapar nada. Mas trouxe aqui um bloco de anotações e uma caneta. Pode ficar tranquila que não vou gravar.

Entramos na casa, ela sentou em um sofá, sentei em outro, de frente para ela e demos início a nossa conversa de quase duas horas, que descreverei nas próximas linhas contando a história do cinema de Tenente Portela.

Cine Castelo. Ou ‘Castelinho’, foi verdadeiramente o primeiro cinema da cidade. Tudo começou com um casal de jovens, donos de uma pequena loja de confecções que adoravam ir ao cinema em outras cidades quando tinham a oportunidade de poder viajar, e sonhavam em um dia poderem ter o seu próprio cinema. Sonho realizado em 1956, quando os dois resolveram vender o loja de confecções juntamente com a casa onde moravam, para construir um prédio especialmente para comportar um cinema e uma nova casa para os dois. O terreno, bem localizado em uma esquina no centro da cidade, tinha sido doado pelo pai de Lurdes.

Cinema erguido, capacidade para 200 pessoas, faltava apenas o maquinário para rodar os filmes. Lá se foi Capitulino Moreira Alves, na época com 29 anos, para Porto Alegre comprar a primeira máquina para o cinema. Uma Solidus série B, usada. Máquina em mãos, só faltava inaugurar, certo? Errado. Quem vai controlar as máquinas? Sady Silva.

Interrompo aqui para contar como Sady foi parar no Castelinho. Morador de Santo Augusto em 1953, na época com 15 anos, Silva não conhecia cinema por dentro. Não porque não queria, mas por falta de dinheiro. Parava em frente ao Cine Astro de Santo Augusto e perguntava para as pessoas que saíam como eram as coisas lá dentro – as pessoas ficam caminhando? A tela é muito grande? – Até que um dia viu um amigo saindo e este veio até ele e perguntou se não queria trabalhar na cabine do projetista junto dele. Sady disse que não sabia. Seu amigo o convidou para subir lá para ver como eram as máquinas e logo que colocou os olhos nelas, Sady se apavorou com o tamanho e a quantidade de parafernália que havia lá dentro. Nunca vou aprender a mexer nisso tudo! Falou. Capaz, retrucou seu amigo, é fácil, te ensino e quando eu sair daqui você assume meu lugar. Dito e feito, em uma semana Sady já estava rodando filmes sozinhos. Seu primeiro filme foi “Um anjo desceu no Brooklin”.

Após alguns anos trabalhando no cinema, Sady foi tentar a sorte em Foz do Iguaçu, trabalhou como frentista em um posto de gasolina. O dono deste posto era de Tenente Portela. Após algum tempo, o posto fechou e o dono voltou a sua terra natal para abrir outro posto, Sady procurou outros empregos na Foz, mas sem sucesso. Veio até Portela para pedir emprego novamente como frentista, mas desta vez não deu tanta sorte, não haviam mais vagas. Então, chegou a notícia de que ele sabia projetar filmes aos ouvidos de Capitulino, que prontamente entrou em contato com ele e o convidou para trabalhar no Cine Castelo. Convite aceito e, agora sim, o cinema estava pronto para ser inaugurado.

A idéia inicial de Lurdes e Capitulino sempre foi visando fins lucrativos, claro, mas andando lado a lado com o lucro, estava a vontade de trazer o entretenimento para a cidade querida. Pois na época, a população ainda sem televisão, não tinha acesso fácil a filmes a não ser por meio do cinema. E eles conseguiram contrato com todas as grandes distribuidoras de época: Universal, Paramount, Continental e Warner.

As sessões eram contínuas, de segunda a segunda o dia inteiro revezando com 3 filmes por semana. E como só havia uma máquina para projetar, as sessões tinham que ter um pequeno intervalo para que se pudesse trocar os rolos de filmes.

O sucesso do Cine Castelo foi enorme. E 11 anos após a inauguração, eles já queriam aumentar o negócio. Compraram um terreno no meio da mesma quadra onde ficava o Castelo e construíram um prédio novo apenas para o cinema. Em parceria com Delmar Gheller, que entrou com o terreno, Capitulino e Lurdes ergueram o novo prédio, agora com capacidade para 400 pessoas e espaço para bar, em 2 anos. E no dia 5 de setembro de 1969 inaugurou-se o Cine Delcap (DELmar e CAPitulino).

Juntamente com o novo prédio, vieram novas máquinas. Novamente Capitulino foi até Porto Alegre e desta vez comprou duas máquinas novas, Solidus série C. O que acabariam com os intervalos, pois com duas máquinas não era mais necessário parar o filmes para trocar os rolos. Enquanto uma máquina rodava um rolo, a segunda ficava no ponto com o segundo rolo.

Em 1969 também começou a funcionar a Lei Embrafilmes, a qual obrigava os cinemas brasileiros a passar 30% de sua programação com filmes nacionais. Lurdes não gostou muito da lei, mas para sua surpresa, a partir dos anos 70 começaram a surgir filmes do Teixeirinha e do Mazzaropi, os quais vivaram sucesso absoluto e sempre ‘enchiam a casa’.

Tudo ia muito bem. O cinema era um sucesso, mas 4 meses após a inauguração do novo cinema, em 19 de janeiro de 1970 veio o baque e a ducha de água fria. Capitulino se programou para viajar até Passo Fundo para trocar uma máquina de sorvetes da Kibon que estava com problemas, para o bar do cinema. Iria sair bem cedo, antes do amanhecer do dia 19, sua filha Rosângela de 12 anos iria junto. Antes de ir dormir naquela noite ela já tinha arrumado suas coisas para ir viajar com o pai. Na madrugada programada, Capitulino levantou, se arrumou, tomou café e estava saindo para viajar.

– Não vai levar a Rosângela? Ela vai ficar triste contigo –, falou Lurdes.

– Fiquei com pena de acordá-la, ela está dormindo igual um anjinho –, respondeu e se foi.

Mais tarde daquele dia, Lurdes recebeu a triste notícia: Capitulino havia se acidentado e falecido. Lurdes então bateu no peito e falou: vou levar o cinema adiante. E ela conseguiu, apesar das grandes dificuldades que passou por nunca ter se envolvido com a parte de negociações com as distribuidoras e com seus representantes, ela conseguiu tocar o cinema até 1975 com a ajuda de Sady

Então, em 1975, ele resolve alugar o Delcap para Roberto Levy, dono do cinema de Três Passos e se muda para Ijuí, onde coloca uma loja de calçados.

-Por quê em Ijuí? Pergunto.

-Porque minhas três irmãs moravam lá e era mais perto dos meus três filhos que estavam em Porto Alegre estudando.

Começou então a decadência do cinema Portelense, apesar de Levy ser muito competente com o seu cinema em Três Passos, em Portela ele não conseguiu o mesmo sucesso. Um pouco pela popularização de televisão no interior do Brasil e um pouco pelos gerentes que ele colocou para cuidar do Delcap. Mas mesmo assim o cinema seguiu firme em suas mãos até 1980 quando resolveu fechá-lo devido ao baixo público também para poder concentrar seus esforços apenas no cinema Trespassense.

O cinema ficou fechado então até 1983, quando o médico pediatra João Francisco Neves da Silva, amigo de Lourdes conseguiu convencê-la a deixá-lo reabrir o local. Lourdes aceitou, mas somente por que era ele quem estava puxando a frente da idéia. Os dois fizeram um contrato e então, Neves chamou mais 40 amigos, que assim como ele, tinham o desejo pessoal de ver o cinema de Tenente Portela funcionando novamente e também para trazer cultura ao povo da cidade. Criaram então o “Cineclube”.

Para encontrar um dos integrantes do clube não foi difícil, na verdade foi bem fácil, pois meu pai, Nilson Luiz Rosa Lopes, fora um. Então optei por perguntar a ele sobre como funcionava o cinema nesta sua reabertura.

Perguntei quando sentamos na mesa que fica no centro da cozinha para almoçarmos. Ele respondeu:

– Como o Neves gostava muito de cinema, ele no início entrou com a grana, já que era o único que tinha alguma, e nós com a mão-de-obra. Mas depois que o cinema começou a se manter, todos faziam um pouco de tudo.

– E qual era a tua função? Perguntei.

– Não lembro. Mas acho que eu era responsável por escolher os filmes que iriam passar. Mas sabe como é, todo mundo ajudava todo mundo.

– E como eram as sessões? Só nos fins de semana?

– Dependia do apelo dos filmes. Às vezes passava de quinta em diante, mas sempre tinha uma opção diferente para o domingo à tarde. Passávamos a matinê de tarde, lá pelas 14h e normalmente as 20h e 30, tinha a sessão noturna. E às vezes rolava até um programa duplo.

– Programa duplo?

– É. Dois filmes na mesma hora. Termina uma sessão e já começa outra, pelo preço de uma.

O clube não desejava lucrar com a reabertura, mas sim apenas abrir o leque de opções culturais para o povo Portelense. E a ideia deu certo, com cada membro exercendo sua função, o Cineclube conseguiu manter o cinema funcionando de vento em popa por 5 anos, até 1994 quando o João Francisco mudou-se de Tenente Portela, indo morar em Porto Alegre.

Lourdes então manda fechar o cinema alegando que o contrato feito era sob o nome do Neves, e ela tinha autorizado a reabertura com a única condição de que fosse ele que o mantivesse, então com a sua partida para a capital, ela encontrou uma brecha para conseguir fechar novamente o cinema.

– Infelizmente a proprietária não aceitou as ponderações do cineclube e optou pela rescisão do contrato, já que o titular na época, o Dr. Neves havia se mudado para outra cidade. Apesar da ótima condição financeira, o cineclube viu-se obrigado a fechar as portas -, explicou Nilson, com um ar de tristeza em sua expressão.

Então novamente o DelCap fecha as suas portas. Desta vez para nunca mais reabri-las. E com elas, fecham-se também as esperanças de que um dia Tenente Portela possa reviver os dias de glória do cinema, nem que seja ao menos por um dia.

Entre os anos de 1999 e 2005, funcionou no local uma igreja Universal do Reino de Deus. Mas após alguns contratempos estruturais, onde a Lourdes se viu obrigada a fazer uma reforma de emergência para evitar que o teto desabasse, resolveu aumentar o aluguel do imóvel. Então, o pastor, por considerar o valor pedido muito caro mudou-se, e desde então o prédio mantêm-se fechado.

Nos últimos dois anos ainda, Lourdes fez uma reforma geral em toda a parte interna do prédio. Tirou as cadeiras, nivelou o chão e tirou o palco onde ficava o telão. Transformou o ambiente em uma galeria, onde ninguém até hoje locou, devido aos altos valores que ela pede.

O que é uma pena, pois em um prédio com tanta história poderiam ser feitas inúmeras outras coisas que fossem de interesse da comunidade, ao invés de deixá-lo sem utilidade alguma. Parece-me que a Lourdes até hoje sente como se o cinema fosse o verdadeiro culpado por ela ter perdido seu marido. E por isso fez de tudo para que o cinema não caísse em “mãos erradas” que pudessem tornar o cinema novamente uma realidade em Tenente Portela.

 Confira AQUI o vídeo com os antigos locais onde os cinemas funcionaram.

  André Rosa Lopes

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